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PAIXÃO PELA EDUCAÇÃO - Rubem Alves

A paixão é emoção gratuita. Não há causas que a expliquem. Mas, quando acontece, ela age como uma artista: da paixão surgem cenas de beleza. Os amantes se imaginam andando de mãos dadas por campos floridos; abraçados numa rede; silenciosos, diante do fogo da lareira; contemplando o rosto de um nenezinho adormecido...Paisagens da paixão.

Minha paixão pela educação tem também suas paisagens. E as paisagens que me comovem, agora que já sou velho, não são as mesmas que me apareciam quando eu era jovem.

Acho que a velhice aparece no momento em que começamos a procurar os herdeiros. Ao meu redor está uma infinidade de objetos que me pertencem. Alguns me são totalmente indiferentes, do ponto de vista afetivo. Como, por exemplo, este computador em que estou escrevendo esse texto, igual a milhares de outros computadores. Não me preocupo com o que vão fazer com ele depois de minha morte. E isso é verdade de todos os objetos definidos pela utilidade. Objetos definidos pela utilidade só valem enquanto forem úteis. Quando deixam de ser úteis são trocados por outros mais novos, ou jogados fora.

O problema está nas coisas que são possuídas por serem amadas, s despeito de sua utilidade. Manoel de Barros, no Livro sobre nada, diz: “Prefiro as máquinas que servem para não funcionar: quando cheias de areia, de formiga e musgo, elas podem um dia milagrar de flores. Todas as coisas apropriadas ao abandono me religam a Deus. Senhor, eu tenho orgulho do imprestável.”

Entre minhas coisas imprestáveis estão pedras que catei em lugares que só eu sei, bolas de gude, piões, troncos de madeira apodrecidos catados no pasto, quadros, livros de arte, livros de literatura, de mística, de poesia, livros que escrevi, CDs, presentes de amigos que, não tendo uma utilidade, são guardados por neles morarem memórias. É preciso que os herdeiros sejam pessoas que os amem e cuidem deles, porque eles são partes de mim mesmo.

Mas, de todos os objetos, os mais difíceis e sutis são as idéias. Bom seria que a gente pudesse fazer com as idéias o mesmo que os testamentos fazem com os objetos: são dados e pronto.

Na minha cabeça moram idéias de dois tipos.

Primeiro, as idéias que não são de ninguém e são de todos, os saberes da ciência, o teorema de Pitágoras, a regra de três, e=mc2, força = massa x aceleração, as informações sobre a história, sobre a filosofia, sobre a geografia, sobre a teologia – tudo isso está gravado e organizado nos arquivos de minha memória de saberes. Congeladas. Paralisadas. Aparecerão quando eu precisar delas e as chamar.

Não tenho nenhum afeto especial por tais informações. Eu as uso como uso martelos e barbantes: pela utilidade. Estão na minha cabeça, mas podem ser encontradas em livros. Se a memória me falhar, vou a um livro e lá estão elas à minha espera. Os educadores deveriam ter isso como moto: mais importante que saber é saber onde encontrar. Se eles soubessem disso, o ensino e os vestibulares seriam totalmente diferentes.

Essas idéias não são minhas. São propriedade universal. Apenas as uso. Assim, seu destino depois de minha morte já está resolvido. Elas nem perceberão que morri.

Mas há outras idéias que são parte de mim. Nietzsche dizia amar somente os livros que haviam sido escritos com sangue. Livros escritos com sangue são aqueles em que as palavras são apenas a carne de idéias nascidas do corpo. A diferença entre os livros escritos com sangue e os outros escritos com conceitos é fácil de ser percebida. Os livros escritos com sangue mexem com o corpo e a alma. Os outros mexem só com a cabeça. O corpo fica do jeito como sempre foi.

Alberto Caeiro tem um lindo poema intitulado O guardador de rebanhos. Diz assim:


Eu nunca guardei rebanhos,

Mas é como se os guardasse.

Minha alma é como um pastor,

Conhece o vento e o sol

E anda pela mão das Estações

A seguir e a olhar...

Quando me sento a escrever versos

Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,

Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,...

olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias, ou

olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho...


Minhas idéias são os carneirinhos que apascento. Minhas idéias são meu rebanho. Amo o meu rebanho. Fico aflito pensando que, quando eu morrer, minhas idéias ficarão sem pastor. Aí me ponho a procurar aqueles que irão apascentar minhas idéias.

Minhas idéias-carneirinho são meus sonhos. Elas nada têm a ver com a ciência. Porque as idéias da ciências são idéias universais, de todos, quer gostemos delas ou não. A verdade científica está fora do círculo do gostar. Minhas idéias não são universais. São minhas, e dos poucos que gostarem delas.

Meus sonhos são minhas esperanças. Os sonhos são a imagem visível das esperanças. Elas não correspondem a nada que exista. Não têm, portanto, existência no mundo da ciência. Mas os sonhos é que nos separam dos animais. Nossas corpos fazem amor com o que não existe, ficam grávidos e parem.

Existe um mundo que acontece pelo desenrolar lógico da história, em toda a sua crueza e insensibilidade.

Mas há um mundo igualmente concreto que nasce dos sonhos: a “Pietá”, de Michelangelo, o “Beijo” de Rodin, as telas de Van Gogh e Monet, as músicas de Tom Jobim, os livros de Guimarães Rosa e de Saramago, as casa, os jardins, as comidas: eles existiram primeiro como sonho, antes de existir como fatos. Quando os sonhos assumem forma concreta ( Hegel dava a isso o nome de ”objetivação do espírito” ), surge a beleza.

Zaratustra dizia haver chegado o tempo para que o homem plantasse as sementes de sua mais alta esperança.

É essa a imagem que se forma ao redor de minha paixão pela educação: estou semeando as sementes da minha mais alta esperança. Não busco discípulos para comunicar-lhes saberes. Os saberes estão soltos por aí, para quem quiser. Busco discípulos para neles plantar minhas esperanças.


ALVES, Rubem. Entre a ciência e a sapiência.

5 Comentários:

Heloisa disse...

Mensagem belíssima! Adoro Rubem Alves
Um beijo com saudades
Helô

Anônimo disse...

Que texto maravilhoso!
Me fez repensar, sobre o semear.
Semeamos muito, nao colhemos tudo... Mas continuamos... Nao podemos parar... As pessoas precisam dos semeadores, esses sao poucos.
bjs Ro

Anônimo disse...

Para realizar a colheita existem muitos, é fácil Colher... Dificil é o plantar, semear, cuidar.
Mas a certeza do trabalho sincero e verdadeiro é nossa dos semeadores. E vamos semeando, mesmo que em terrenos diferentes...
bjs, Ro

Glaucia disse...

É verdade Ro... se semeamos Amor, colhemos Amor, Se semeamos Alegria, colhemos alegria... esses são alguns dons que recebemos gratuitamente de Deus.
Um beijo no coração!
Glaucia Campos

Glaucia disse...

Oi Helô... tudo jóia... que bom te ver por aqui!!! aparece sempre.
Estarei postando no mínimo uma vez por semana.
beijos nas gatinhas...

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